BRASÍLIA - A realidade de penúria nos hospitais do Sistema Único de
Saúde (SUS), vivenciada diariamente pelos brasileiros que dependem da
saúde pública, aparece com exatidão numa auditoria inédita do Tribunal
de Contas da União (TCU), aprovada ontem pelos ministros no plenário do
tribunal. Depois de visitarem 116 hospitais gerais e prontos-socorros em
todos os estados e no Distrito Federal, auditores do TCU concluíram que
81% das unidades têm déficit de médicos e enfermeiros e que, em 56%
delas, faltam remédios e ataduras em razão de falhas nas licitações.
A
falta de equipamentos mínimos, como monitores e ventiladores
pulmonares, leva ao bloqueio de leitos em 77% das unidades visitadas. As
alas de atendimento de emergência estão "sempre" superlotadas - com
ocupação acima de 100% - em 64% dos hospitais, conforme levantamento
junto aos gestores das unidades.
O diagnóstico inédito do TCU
será encaminhado ao Congresso Nacional, como forma de balizar as
discussões sobre a destinação de recursos públicos federais para a
Saúde. Uma nova auditoria será feita para analisar como a União está
repassando dinheiro para estados e municípios, que têm suas próprias
responsabilidades na gestão compartilhada do SUS.
Os números não
escondem a rotina de improvisação nos hospitais visitados pelos
auditores, em especial nos setores de emergência. O relatório técnico
reproduz algumas situações encontradas: um paciente no Amapá, que tinha
sofrido um AVC, aguardava havia cinco horas a chegada de um médico
neurologista deitado num banco no corredor; pacientes estavam em macas
na recepção de um hospital universitário de Santa Maria (RS); em alguns
hospitais da Paraíba, os auditores tiveram dificuldades para transitar
entre os leitos, em razão da superlotação.
O déficit de pessoal
nos hospitais se soma à falta de gestão e destinação adequada aos
equipamentos adquiridos. Um hospital do Rio de Janeiro tinha
equipamentos de ultrassonografia encaixotados na ocasião da visita dos
auditores do TCU. A falta de uma sala numa unidade em Mato Grosso do Sul
impedia a instalação de uma máquina de endoscopia. Em Mato Grosso,
aparelho deixou de ser instalado porque não houve ampliação da rede de
energia. E, no Maranhão, dois hospitais receberam equipamentos sem
necessidade.
A auditoria do TCU chama a atenção também para a
diminuição do número de leitos ofertados pelo SUS na gestão da
presidente Dilma Rousseff. Entre 2010 e 2013, 11,5 mil leitos deixaram
de existir, uma redução de 3,2%. Esse não é um fenômeno exclusivo do
Brasil. A redução de leitos vem ocorrendo nos países-membros da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) nos
últimos 15 anos, num ritmo até superior ao verificado no Brasil. O país,
porém, é o penúltimo em quantidade de leitos numa comparação com os
países europeus. Está à frente apenas da Turquia, conforme os dados da
OCDE.
Em 2013, o país tinha apenas 2,51 leitos por mil
habitantes. A média dos países-membros da OCDE foi de 4,8 leitos por mil
habitantes. Na União Europeia, de 5,3. Enquanto diminuiu a quantidade
de leitos ofertados pelo SUS, de 359,9 mil para 348,3 mil, aumentou a
quantidade de vagas nos hospitais privados, de 147,8 mil para 156,1 mil,
entre 2010 e 2013.
DIMINUIÇÃO GENELARIZADA DE LEITOS
A
redução no SUS é generalizada, em praticamente todas as especialidades. A
auditoria do TCU aponta a diminuição de leitos cirúrgicos, clínicos,
obstétricos e pediátricos, entre outros. O Ministério da Saúde
justificou essa diminuição em resposta às conclusões preliminares dos
auditores: leitos pediátricos foram reduzidos em razão de "ações de
prevenção e proteção"; os obstétricos, em função da diminuição do número
de nascimentos; e os psiquiátricos, por causa da "criação de serviços
substitutivos aos hospitais especializados".
No caso de leitos de
unidades de terapia intensiva (UTIs), a auditoria registra um aumento
da oferta pelo SUS, de 16 mil, em 2010, para 19 mil em 2013 - uma
variação de 18%. A maioria das vagas, porém, ainda está disponível em
instituições privadas. "Apesar de a maioria da população brasileira ser
usuária exclusiva do SUS, havia uma concentração dos leitos de UTI fora
do SUS. Essa concentração não foi observada em relação aos leitos de
internação", ressaltam os auditores do TCU. Gestores da grande maioria
dos hospitais visitados apontaram a falta de vagas em UTIs.
O TCU
também fiscalizou a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos,
cujo conselho é formado por ministros de quatro pastas: Saúde, Casa
Civil, Justiça e Fazenda. No relatório votado pelos ministros, são
reproduzidas as últimas auditorias do colegiado, responsável por definir
o preço máximo de comercialização de medicamentos.
AUDITORIA REGISTRA DISTORÇÕES DE PREÇOS
Numa
comparação com outros nove países que também têm esse tipo de
regulação, os auditores constataram que o Brasil tem 23 remédios - do
grupo de 50 mais comercializados - com o maior preço de mercado. Desses
50 princípios ativos, 43 têm preço acima da média internacional. Somente
dois têm o menor preço no Brasil. A auditoria fala em "distorções" em
alguns preços fixados pela Câmara de Regulação, com "patamares bastante
superiores aos praticados nas compras públicas".
Diante de um
agudo quadro de superlotação das alas de emergência, oito em cada dez
hospitais têm como principal motivo para o bloqueio de leitos a falta de
médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde. Já em seis, entre
dez unidades, o atendimento é inadequado por conta de equipamentos
antigos ou desatualizados.
"A insuficiência de leitos para
internação ou realização de cirurgias aumenta o tempo de permanência dos
pacientes na emergência dos hospitais", afirma o ministro Benjamin
Zymler, relator do processo de fiscalização da Saúde no TCU, no voto
apreciado ontem em plenário. "O paciente acaba internado na emergência à
espera do devido encaminhamento, o que tende a provocar atrasos no
diagnóstico e no tratamento e aumenta a taxa de mortalidade."
No
caso da atenção básica em saúde, as unidades têm dificuldades de atrair
ou fixar os profissionais de saúde e também falta dinheiro para custear o
Programa Saúde da Família. Essa é a realidade em 65% dos hospitais
visitados. "A cobertura do Saúde da Família nas cidades maiores, que
concentram os grandes hospitais, ainda é baixa, o que aponta outra causa
para que a população acorra diretamente aos serviços de emergência
hospitalares, mesmo que seja para tratar de enfermidades não tão
graves", cita Zymler.
O TCU ainda vai aprofundar o estudo para,
então, fazer determinações e recomendações ao Ministério da Saúde. Os
próximos relatórios vão detalhar o impacto das políticas públicas
adotadas pelo ministério.
O GLOBO tentou ouvir o Ministério da
Saúde sobre as conclusões da auditoria do TCU. Não houve retorno até o
fechamento da edição.
Fonte: Jornal O Globo
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