"Acabou o amor." O canto da torcida do Flamengo na arquibancada do
Maracanã é, antes de tudo, um grito de guerra. Ecoa naqueles momentos de
tensão, quando é preciso recobrar as forças. Fora dos gramados, o amor
parece ter acabado também nas ruas e avenidas do Rio. A Cidade
Maravilhosa exibe claros sinais de cansaço diante do desafio de abrigar,
em um intervalo de apenas dois anos, os eventos esportivos de maior
visibilidade do mundo: a Copa e a Olimpíada. Além das dificuldades
naturais de uma metrópole como o Rio, o carioca ainda terá de enfrentar
um segundo tempo exaustivo, com uma agenda extensa de obras em
andamento, e conviver com o estresse de uma das mais acirradas disputas
para o governo estadual em duas décadas. É preciso recobrar as forças.
Na semana passada, a turma do Jeitinho Carioca - coletivo que criou o
bordão "Imagina na Copa" e produz uma websérie cômica sobre o Rio - foi
ao largo da Carioca, no centro, para pesquisar novos episódios e
conclamar o morador da cidade a fazer alguém feliz. O resultado foi
pouco animador. Deixaram o local com uma longa lista de reclamações, do
trânsito à sujeira nas ruas, passando pela alta dos preços e a questão
da segurança pública, mas principalmente com a sensação de que o carioca
não está bem-humorado em relação à sua cidade. "A irreverência deu
lugar ao descaso e ao mau humor", diz Sil Esteves, uma das integrantes
do grupo.
Nos últimos meses, uma onda de reclamações como essas acendeu o
alerta no governo e também no setor privado do Rio, mesmo com o maior
volume de investimentos dos últimos 50 anos. A preocupação geral é com
um movimento que remeta à crise de autoestima que atingiu a cidade na
década de 1990 e só arrefeceu quando o Rio obteve melhores indicadores
econômicos e a cidade foi escolhida para ser sede da Olimpíada de 2016.
Pesquisas já captam a reversão na sensação de bem-estar. Depois de
bater o recorde em 2011, no ano passado o orgulho de morar no Rio voltou
ao nível de 2008, segundo o movimento Rio Como Vamos, que a cada dois
anos faz levantamentos sobre a percepção dos cariocas a respeito da
cidade.
"Há ansiedade em relação a vários assuntos e o tema da segurança, na
minha opinião, está no topo da lista", observa o ex-presidente do Banco
Central Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e um apaixonado pelo
Rio. "Mas vejo como positiva a resposta da opinião pública. As pessoas
estão conscientes da importância da política", prossegue o economista,
um dos nomes mais próximos do pré-candidato tucano à Presidência, Aécio
Neves.
A possibilidade de a cidade ter se desviado do caminho de consolidar o
reencontro com o sucesso pode ser um dos fatores para a sensação atual.
Para Sebastião Santos, coordenador da ONG Viva Rio, os cariocas temem
mais voltar aos momentos agudos das décadas perdidas do que os problemas
causados pelas obras e a reverberação da questão da insegurança
pública. "O medo influencia o humor, o jeito de ser, mas ainda não
afetou a vida social e cultural do Rio."
Em junho, manifestações em várias cidades do país vocalizavam uma
insatisfação nacional, mas, no Rio, as palavras de ordem alcançaram
decibéis bem mais altos. Um mês depois, o governo de Sérgio Cabral
(PMDB) já amargava a pior avaliação do país, segundo pesquisa da
Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com o Ibope. Apenas
12% da população considerava a sua gestão ótima ou boa. Nesta
sexta-feira, Cabral deixa o Palácio da Guanabara com a intenção de ser
candidato ao Senado.
Manifestantes
diante do prédio onde mora o governador: em junho, Cabral (PMDB)
amargava a pior avaliação do país, segundo pesquisa da CNI) em parceria
com o Ibope
Os protestos arranharam também o prefeito do Rio, Eduardo Paes
(PMDB). Ele mesmo admite que está sendo "odiado" pela população e
trabalha com a expectativa de que, quando as intervenções urbanas
terminarem, terá sua reputação recuperada. O prefeito considera natural
um certo desânimo de assessores - alguns emblemáticos -, que deixaram o
seu governo nos últimos dias. Em menos de duas semanas anunciaram a
saída a secretária de Educação, Cláudia Costin, e a diretora da Empresa
Olímpica Municipal, Maria Silvia Bastos Marques. Já o secretário
municipal de Transportes, Carlos Roberto Osório, braço direito de Paes,
mesmo com todas as críticas em sua área, optou por disputar um cargo
eletivo: vai postular uma vaga de deputado. Outros cinco assessores vão
se desligar da prefeitura, entre eles o chefe da Casa Civil, Pedro Paulo
Carvalho, muito próximo a Paes.
"Ninguém lembra que fui o prefeito que criou condições para que a
cidade recebesse investimentos em um momento de crise no país", diz
Paes. É verdade que não ajudou em nada um vídeo postado no YouTube, em
fevereiro, que mostra o prefeito lançando restos de fruta durante um
evento político. A cidade estava em meio à crise da greve dos garis e
fazia seis meses que entrara em vigor a lei do Lixo Zero, que pune quem
joga sujeira no chão. "Acho que estou superimpopular, mas não perdi o
prazer de ser prefeito. Falem mal de mim, mas não da cidade." (Leia
entrevista na página 10.)
Para Paes, fatores conjunturais colaboram para comprometer a imagem
da cidade. Os transtornos causados pelas intervenções urbanas em virtude
dos megaeventos, a constatação de que o Brasil é um "país que não vive
seu melhor momento" e o fato de estarem "desafiando" o programa de
pacificação da cidade, que visa recuperar territórios ocupados há
décadas por traficantes e milicianos, tornam o panorama mais cinzento.
De fato, as nuvens estão carregadas, especialmente na área de
segurança pública. Em menos de um ano, o Rio enfrentou longas e
violentas manifestações. Foram duas greves com ampla repercussão - dos
professores, em 2013, e dos garis, em pleno Carnaval. Ações do crime
organizado e da polícia motivaram um novo pedido de ajuda ao governo
federal - o primeiro desde que o programa das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) foi lançado, em 2008.
Nas ruas, as manifestações foram marcadas pela morte do cinegrafista
da Rede Bandeirantes Santiago Ilídio Andrade, atingido por um
sinalizador jogado por manifestantes, mas também por cenas de violência
da polícia divulgadas nas redes sociais. Meses antes, houve ampla
repercussão do caso do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza,
supostamente morto por policiais da UPP da Rocinha. Ele era morador da
favela de onde também saiu o grupo de PMs preso pela Polícia Federal
nesta semana, acusado de fornecer informações para traficantes de
drogas. As UPPs passaram a ser alvo de ataques, incluindo a morte de
policiais em serviço. E a polícia também cometeu erros, simbolizados
pelas cruéis imagens da servente Claudia Silva Ferreira, que foi
arrastada no asfalto por um carro da PM durante um possível resgate,
após ser baleada no Morro da Congonha, em Madureira.
"Os conflitos entre grupos armados e as UPPs deixam moradores que
sempre estiveram vulneráveis em situação de terror", afirma Jorge Luiz
Barbosa, coordenador da ONG Observatório das Favelas. Para ele, a
ocupação do Complexo da Maré pelo Exército no fim de semana reforça a
militarização do processo de pacificação. "Havia uma demanda de que os
serviços públicos também chegassem às comunidades, o que não está
acontecendo."
Vista
aérea da Perimetral: "O carioca está cansado de obras que têm que ser
feitas, do trânsito que não tinha. Talvez esteja com pouca paciência,
mas adora a cidade", diz Mussnich
Mas os sinais de cansaço não estão apenas na esfera pública. O Índice
de Confiança do Empresário (ICE), medido pela Federação das Indústrias
do Rio de Janeiro (Firjan), voltou a cair no começo do ano, depois de
ensaiar uma recuperação no fim do segundo semestre de 2013. Ainda de
acordo com a Firjan, o mercado de trabalho reflete esse estado de
espírito: a geração de vagas registrou o pior resultado em dez anos em
2013. As oportunidades na construção civil - um dos setores mais ativos
no Rio -, no ano passado, caíram para menos de 10% de 2012.
A previsão de investimentos na cidade é alta como nunca. Entre 2012 e
2014 soma US$ 18 bilhões, incluindo os US$ 5 bilhões em 48 projetos
intermediados pela agência de promoção de investimentos Rio Negócios
desde sua criação, em 2010. Já as obras de mobilidade e reestruturação
urbana incluídas no pacote da Olimpíada representam mais US$ 8 bilhões.
As informações são da Rio Negócios com base em dados da Firjan.
O economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mauro
Osório, especialista em economia fluminense, avalia que o Rio sofre por
ter pouca reflexão sobre a própria realidade, o que faz o carioca ir da
euforia à insatisfação sem muita sustentação. "Fiquei impressionado com o
apoio da população à greve dos garis."
A cidade é também a que tem mais jovens entre as três maiores regiões
metropolitanas, na categoria dos chamados "nem nem", de acordo com
Osório. São os que nem trabalham nem estudam. Totalizam 26,8% ante
23,2%, de São Paulo, e 19,9%, de Belo Horizonte. Em alguns bairros, como
Santa Cruz e Jacarezinho, esse índice chega a quase 40%. Na Rocinha,
favela com o maior proporção de trabalhadores com carteira assinada da
cidade, o percentual dos "nem nem" fica em 28%.
O salário médio no Rio, que em 2002 era de 85% do que é pago em São
Paulo, ultrapassou a média do Estado vizinho e hoje é equivalente, de
acordo com dados levantados pelo Sindicato de Hotéis, Bares e
Restaurantes (SindRio). Mas não parece suficiente para compensar os
aumentos da cesta de compras. Enquanto no Brasil, dos 50 itens que mais
subiram em 2013, apenas 6 não são alimentos, no Rio, esses itens
representam pouco mais da metade dos que mais pressionaram a inflação.
Na lista das 50 maiores altas, estão psicólogos (6º item, com alta de
24,5%), joias (11º item, com 20,9%) e estacionamento, cujo aumento foi
de 17,8% em 2013, além de clubes e aluguéis.
O custo de morar no Rio é um capítulo à parte nesse enredo repleto de
efeitos colaterais por causa da Olimpíada e da Copa. "O carioca teve
que optar por imóvel menor ou em localizações menos valorizadas", diz
Fernando Schneider, diretor da administradora de imóveis Apsa, uma das
maiores da cidade.
Neste ano, para se manter em um apartamento de dois quartos, com 75 m2 em Ipanema ou no Leblon, o carioca tem que desembolsar 70% mais do que
em 2009, antes de a cidade ser escolhida para sediar a Olimpíada. Outra
opção foi migrar para Copacabana ou Flamengo, de onde quem não quis
aumentar os gastos com moradia teve que sair para desembarcar na Zona
Norte, como Tijuca ou Jacarepaguá. "Esses preços de 2009 são muito
próximos dos preços dos apartamentos quarto e sala nesses mesmos bairros
em 2014. É o custo para se manter na Zona Sul."
O setor privado também enfrenta o mau humor do carioca, que neste
verão lançou mão da irreverência em movimentos cujo mote era a crítica
aos preços de alimentos e serviços na cidade. Foi daí que nasceram os
movimentos nas redes sociais Rio Surreal, cujo mote é a denúncia de
preços considerados extorsivos, e Isoporzinho, prática de levar para a
rua a própria bebida em "coolers" que, até há algum tempo, era encarada
de olho torto pelo carioca e recebia o apelido pejorativo de "farofa".
"Houve excessos. O setor [serviços] tem que ser competitivo. Não
adianta varrer os problemas para debaixo do tapete. Tem que discutir e
admitir que ninguém tem a resposta", diz Pedro de Lamare, presidente do
SindRio, que fez um estudo para tentar explicar a alta dos preços dos
serviços e descobriu novos fatores de pressão, para além dos aluguéis e
da inflação de alimentos e mão de obra, como a demanda por segurança
privada. "Esse item consome 1% do faturamento do setor. Alguns
restaurantes que não tinham segurança estão contratando." Após ser
assaltado recentemente, o CT Trattorie, restaurante do cultuado chef
Claude Troisgros no Jardim Botânico, aderiu à segurança particular,
segundo Lamare.
Operação
militar no Complexo da Maré: "Há ansiedade em relação a vários assuntos
e o tema da segurança, na minha opinião, está no topo da lista",
observa Arminio Fraga, um apaixonado pelo Rio
Todos esses indicadores, na avaliação de Tereza Lobo, do Rio Como
Vamos, são insuficientes para compreender a dinâmica atual da cidade. Os
principais gatilhos para essa percepção, em sua opinião, estão na
mobilidade e na segurança, mas também existe uma grande insatisfação com
os serviços. O carioca reconhece melhorias, principalmente na educação e
na saúde, mas, quando precisa atribuir notas, é duro na avaliação,
feita para as pesquisas do movimento. "Houve uma euforia com a Copa e a
Olimpíada, estimulada pelo próprio governo, que, agora, volta como
frustração. Mas isso não quer dizer que o carioca entrou em depressão."
Tereza analisa os indicadores de criminalidade, vê retrocesso, mas
confirma que a cidade, como pondera o prefeito, está melhor. Os roubos
na rua, por exemplo, subiram 19% em 2013, mas ainda estão cerca de 30%
abaixo do registrado em 2009. O alerta se acende ao observar os
indicadores do mal das grandes cidades na violência no trânsito, que
pioram ano a ano. "Menos de 10% dos cariocas consideram o trânsito bom;
75% dos entrevistados citam a lentidão como o principal motivo, mas as
outras razões estão associadas à postura dos próprios motoristas e do
poder público", diz. "Não adianta só fazer campanha, tem que fiscalizar e
punir."
Na prefeitura da capital, o esforço para destravar a insatisfação
mobiliza uma força-tarefa de comunicação. A estratégia se sustenta nos
dados sobre investimentos compilados pela Rio Negócios, na avaliação da
agência de classificação de risco Standard & Poor's, que rebaixou a
nota de crédito do Brasil, mas manteve o "grau de investimento", e
também de um discurso mais "pé no chão" do prefeito.
A pesquisadora Patrícia Cerqueira Reis, especialista em marketing de
cidades da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), defende a
tática mais realista ao discurso ufanista. O risco da retórica descolada
da realidade seria o carioca entrar em uma espécie de síndrome da
propaganda de margarina: "Olha a imagem que é vendida da cidade, mas não
se reconhece".
"Essa imagem corresponde ao que o turista quer vivenciar quando vem
ao Rio, mas não ao que o carioca vive aqui. É uma construção
estereotipada, que é promovida pela própria prefeitura e acaba caindo no
descrédito", diz. "A imagem do carioca alegre, que está sempre de bem
com a vida, nem sempre corresponde à realidade."
Uma pesquisa do Instituto Ipsos SMX, feita a partir de menções
espontâneas na internet, constatou que, entre fevereiro e março, 29% dos
pesquisados demonstram um sentimento negativo em "ser carioca", mas a
maioria (62%) exibe aspectos positivos.
Carioca emblemático, morador do Leblon e botafoguense, o advogado
Francisco Mussnich, responsável por boa parte das mais vultosas
operações de fusão e aquisição no Brasil, diz que é preciso ser fiel ao
Rio. "O carioca está cansado de obras que têm que ser feitas, do
trânsito que não tinha. Sente-se desprotegido. Talvez esteja com pouca
paciência, mas adora a cidade", observa.
Na mesma linha, Fraga aproveita para recolocar na pauta a despoluição
das águas da cidade, cujo símbolo máximo é a Baía de Guanabara. "O
prazo de preparação para os Jogos [Olímpicos] não era suficiente. Todo
mundo sabe que isso é trabalho para uma geração. Mas sonho com um Rio
cada vez mais verde. O meio ambiente aqui deveria ser sagrado. Tem tudo a
ver com a vocação da cidade", afirma.
Fonte: Valor Econômico
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