O retrato da crise

O cenário é desolador. David John Rodrigues de Melo Santos, pensionista do estado que ainda não recebeu os vencimentos de agosto, enfrenta diariamente a longa fila que toma conta da rua em que fica o Restaurante Popular Betinho, que pode fechar as portas na próxima semana por falta de pagamento. A situação é reflexo da severa crise enfrentada pelo governo do Rio, mas não é a única. No caminho das pessoas que vão até a Rua Senador Pompeu, no fundos da Central do Brasil, em busca de um prato de comida por R$ 2, muitos buracos, sujeira por todos os lados, barracas ocupadas por usuários de crack, prostitutas e traficantes que descem do Morro da Providência, onde há uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), para vender drogas no asfalto.

Essa rotina degradante fica a poucos metros da sede da Secretaria de Segurança, de uma unidade da Polícia Civil (4ª DP) e do Comando Militar do Leste (CML), responsável pelas operações das Forças Armadas durante os Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Em meio ao caos, sinais das mudanças pelas quais o Rio está passando: o moderno VLT vai cruzar a região, e o teleférico para a Providência já uma realidade.

SERVIDORES RECLAMAM DE DESCASO

Equipes do GLOBO estiveram nesta terça-feira no restaurante popular, mas por pouco tempo. Os repórteres foram orientados a deixar o lugar porque a boca de fumo fica muito perto. Só na unidade da Central do Brasil são servidos 3.700 mil almoços por dia e 1.800 cafés da manhã.

Desde que a crise do estado se agravou no fim do ano passado, David, que tem 40 anos e é esquizofrênico, passou a almoçar no restaurante popular. Ele também vende pipoca na Central do Brasil para ajudar a pagar as contas. O pai dele, que trabalhava no Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (Iaserj), morreu há três anos. A pensão de R$ 920, diz ele, não é suficiente para os gastos com supermercado e para comprar remédios. Na semana passada, David disse que se sentiu aliviado quando soube que a Justiça havia determinado o arresto nas contas do estado. No entanto, até ontem, o dinheiro ainda não tinha caído em sua conta.

— Não tenho nada contra os restaurantes populares, mas hoje estou aqui porque a falta de gestão do governo do estado me obrigou a isso. Os salários atrasados estão deixando muitas pessoas atoladas em dívidas. Para sobreviver, vendo pipoca e pego dinheiro emprestado com juros, claro. Quando sai a pensão, não sobra nada. Eu não escolhi ter esquizofrenia. Se pudesse, estaria trabalhando sem precisar depender de um governo que não pensa no povo — disse David, enquanto aguardava, sob o sol, na longa fila para se alimentar.

Para controlar os sintomas da esquizofrenia, David usa três medicamentos que, juntos, custam R$ 50:

— Não posso ficar sem meus remédios, é desesperador. Quando não tenho o dinheiro para comprar, tento conseguir no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, na Praça da Harmonia, mas nem sempre os remédios estão disponíveis. Recebo a pensão do meu pai, mas, nesses últimos meses, minha vida virou um verdadeiro inferno por causa dos atrasos no pagamento. Estou cansado de olhar diariamente o saldo bancário em vão.

Moradora do Méier, a auxiliar de serviços gerais aposentada Maria Célia Silva, de 79 anos, também começou a almoçar no restaurante popular de seu bairro por causa dos atrasos dos pagamentos. E, nos últimos dias, tem pedido ajuda até mesmo para pagar a refeição de R$ 2.

— Trabalhei tantos anos para o governo pensando que teria uma aposentadoria digna, mas, agora, mal posso comprar comida para minha casa. E as contas, que sempre honrei, estão todas atrasadas — lamenta a aposentada.

Mas quem depende dos restaurantes populares neste momento de crise teme ficar até sem esta opção. Todas as unidades estão funcionando, apesar das dívidas. A empresa Home Bread, que administra as unidades da Central do Brasil, da Cidade de Deus e do Méier, informou que aguarda uma solução da Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos até a próxima sexta-feira sobre a dívida que se arrasta há mais de um ano e estaria hoje em torno de R$ 20 milhões. Por nota, a empresa disse que, caso não haja resposta positiva, na segunda-feira, as empresas que administram os restaurantes populares vão se reunir para acertar uma data para o fechamento.

De acordo com a secretaria, o estado tem 15 restaurantes populares, que servem 37 mil refeições e 21.500 cafés da manhã, diariamente. O órgão informou que a dívida com os administradores dos restaurantes é de R$ 28 milhões, porém desconhece o prazo passado pela Home Bread para o encerramento das atividades.

Também em comunicado, a Secretaria estadual de Fazenda disse que “os pagamentos serão realizados o mais rapidamente possível, dependendo da disponibilidade de recursos em caixa". A pasta acrescentou que, devido à grave crise financeira, a prioridade é o pagamento dos salários dos servidores ativos, inativos e pensionistas, além da quitação de despesas obrigatórias.

Em contraste com a penúria estadual, na Rua do América, que começa no bairro de Santo Cristo e segue até a Central do Brasil, operários estão instalando trilhos do VLT. A região está recebendo também obras de urbanização e infraestrutura. O fechamento parcial da via acabou facilitando a ação de criminosos. Em pelo menos 200 metros de extensão, usuários de drogas instalaram barracas e consomem principalmente crack à luz do dia. O ponto mais crítico é próximo à garagem de uma empresa de ônibus.

Em vários pontos no entorno do prédio da Central do Brasil, camelôs instalaram barracas improvisadas. Como são inúmeras, fica quase impossível o uso da calçada para quem circula no local.

— Tem dia que só é possível andar pelo meio da rua. É o caos — diz um comerciante, que prefere não ser identificado, acrescentando que o som de tiros é constante. — Esta semana, eu não ouvi, mas, na semana passada, foram muitos.

O barulho de guerra vem de operações policiais nos morros da Providência e da Pedra Lisa. Mas o comerciante diz que cenas de violência no asfalto também são corriqueiras. É comum ouvir gritos de “pega ladrão” em meio à multidão.

— Na Central do Brasil, ninguém é bobo. Tem que estar na atividade — diz outro comerciante.

A quantidade de ambulantes é tanta que os policiais civis da 4ª DP (Central do Brasil) contam que, todos os dias, precisam mandar camelôs desocuparem a entrada da delegacia.

— É todo dia. Se deixar, não dá nem para as pessoas entrarem aqui — conta um policial.

A Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop) garantiu ontem que vai intensificar a fiscalização para coibir o comércio ambulante irregular. A Seop informou que, junto com a Guarda Municipal, realiza operações diárias na área. Do mês passado até ontem, foram apreendidos 6,5 mil itens comercializados de forma irregular na região do Centro. Já a Coordenadoria de Polícia Pacificadora disse, por nota, que a UPP da Providência tem reforçado o patrulhamento na comunidade e realizado operações com o apoio de unidades do Comando de Operações Especiais (COE). Segundo a coordenadoria, denúncias devem ser encaminhadas à Ouvidoria Paz com Voz, principal canal de comunicação com as UPPs.

Fonte: Jornal O Globo
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