A incoerente idéia de se criar um novo Tribunal de Contas no Rio de Janeiro
Por: Brasil Alerta


Um órgão não está funcionando bem? Ok, deixe-o como está, e, ao mesmo tempo, crie outro quase igual para substitui-lo. Duplicar um problema, em vez de tentar resolvê-lo, parece ser a nova estratégia da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Graças a esse método surreal de administração pública, o Estado do Rio corre o risco de tornar-se o único da federação a contar com três tribunais de contas – a imensa maioria dos Estados tem apenas um.

A medida, prevista em proposta de emenda à constituição estadual (PEC 60), traz de imediato uma despesa de R$ 90 milhões com a instalação do novo tribunal, segundo estimativa dos técnicos do TCE-RJ. E permitirá também que mais R$ 120 milhões sejam gastos anualmente com pessoal desses órgãos e do Legislativo, de acordo com acréscimos autorizados nestes casos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Apesar do iminente prejuízo para os cofres públicos, não houve sequer uma audiência pública na Assembléia para discutir a PEC-60, que tramita a toque de caixa e deverá ser votada em março.

De autoria dos deputados Cidinha Campos (PDT), Paulo Ramos (PDT), Marcelo Freixo (PSOL), André Correa (PPS) e Gilberto Palmares (PT) , a PEC 60 determina que o atual Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro torne-se responsável apenas pelo controle dos órgãos, autarquias e secretarias do governo estadual. Noventa e um municípios, hoje submetidos ao TCE-RJ, passariam a ser fiscalizados pelo novo tribunal, chamado Tribunal Estadual de Contas dos Municípios (TECM), previsto para funcionar em Niterói, em um prédio que atualmente abriga a sede da Escola de Contas e Gestão. Como a cidade do Rio tem seu próprio tribunal (TCM), chegaria a três o número de cortes de contas em funcionamento no Estado.

Mesmo sem construção de edifício e com remanejamento de funcionários, estima-se que R$ 7,6 milhões terão de ser gastos apenas com instalação dos gabinetes e assessorias dos sete novos conselheiros. Outros R$ 28,8 milhões deverão ser destinados a obras para abrigar 750 servidores, R$ 15,6 milhões para equipamentos e sistemas de informática, R$ 8,8 milhões para bens em geral, além R$ 29 milhões para atividades de custeio e verba indenizatória.

Hoje, somente quatro dos 26 Estados – Bahia, Goiás, Ceará e Pará – mantêm essa estrutura duplicada, em desuso no país há mais de 30 anos. O limite atual gastos do Poder Legislativo no Rio de Janeiro, somando Alerj e TCE, é de 3% da receita corrente líquida do Estado. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) permite que este percentual suba para 3,4% (art. 20,II e § 4º) nos Estados com dois tribunais – demonstração cabal de que uma segunda estrutura, por mais enxuta que seja, custa mais. Essa diferença, entretanto, tem de ser retirada das despesas salariais do Poder Executivo – o que significa, no caso do Rio de Janeiro, uma redução de R$ 120 milhões anuais de setores essenciais como Saúde, Educação e Segurança.

Temeridade

Engana-se quem pensa que tal multiplicação de repartições venha a garantir a transparência e eficiência das contas públicas. O risco é justamente o contrário. A proposta que a maioria dos deputados cariocas tende a aprovar simplesmente revoga o artigo 348 da Constituição Estadual – dispositivo que obriga prefeituras e câmaras municipais apresentarem ao TCE os valores atualizados da remuneração de prefeitos e vereadores fluminenses.

Nos últimos cinco anos, eles tiveram de devolver ao erário R$ 25 milhões, por terem legislado em causa própria, desrespeitando os tetos salariais. A partir de agora, o céu pode ser o limite para os salários dos políticos municipais.

A nova lei também impedirá, em ano eleitoral, que os auditores do TCE concluam as prestações de contas municipais em andamento. Isso significa deixar em aberto a fiscalização de até R$ 17 bilhões – valor da soma dos orçamentos das 91 prefeituras. Todos os processos terão de ser imediatamente transferidos para o novo tribunal, que ainda não estará em pleno funcionamento este ano – atraso mais do que favorável aos maus gestores. É bom lembrar que, nas últimas eleições, os políticos com contas rejeitadas tiveram seus nomes divulgados pelo TCE. A lista dos “ficha suja” permitiu à Justiça Eleitoral impugnar o registro de várias candidaturas. A PEC 60 já recebeu também o apoio integral da Associação dos Prefeitos do Estado do Rio de Janeiro – uma demonstração inédita de sintonia entre o fiscalizado e o novo fiscal.

Critérios políticos

O que não muda com a PEC 60 são os critérios políticos para escolha dos futuros conselheiros – os que detêm o poder vitalício, segundo a Constituição Federal, de julgar as contas dos administradores públicos. Com a aprovação da emenda estadual, o novo Tribunal de Contas terá outros sete novos conselheiros, com salários de R$ 26 mil, além de vantagens, cotas de gabinete e corpo de assessores, escolhidos sem concurso público. Quatro continuarão a ser indicados pela Alerj e três pelo governador. Entretanto, pela proposta de emenda, não mais será exigido dos conselheiros curso superior ou tempo mínimo de permanência no cargo para aposentadoria (obrigatória aos 70 anos).

E pensar que essa polêmica começou justamente para tentar disciplinar os conselheiros. Em 2009, a Alerj criou uma CPI que tinha como alvo três conselheiros do TCE – José Graciosa, José Nader e Jonas Lopes – investigados pela Polícia Federal, sob suspeita de corrupção, na chamada Operação Pasárgada. Apoiado em recursos judiciais, o grupo, que tem direito a foro privilegiado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), conseguiu barrar todas as investidas da CPI. Inconformados com “constatação da total impossibilidade desta Assembléia interferir em qualquer assunto relativo ao TCE”, como sustentam na exposição de motivos da PEC 60, seus autores, todos membros da CPI do TCE, decidiram então esvaziar o TCE, criando um tribunal-irmão, mas sob controle de aliados.

Guardadas as diferentes motivações, a guerra da Alerj com o TCE lembra as batalhas do Palácio do Planalto com o Tribunal de Contas da União (TCU). Ressentindo-se de decisões de ministros supostamente oposicionistas, o governo federal desrespeitou decisões do órgão e ameaçou limitar, por via legal, as prerrogativas do TCU.

Os deputados cariocas reconhecem também, na exposição de motivos da PEC, que a Assembléia Legislativa, “responsável por indicar quatro dos sete conselheiros do TCE, é corresponsável por aquilo em que se transformou o nosso tribunal”. No Rio de Janeiro, jamais um funcionário de carreira foi indicado para ser conselheiro do TCE. “Não há nada na PEC 60 que garanta a escolha por critérios técnicos ou meritórios – uma discussão que hoje se faz nacionalmente”, afirma o presidente da Associação dos Servidores do TCE-RJ, Luiz Marcelo Magalhães. “Em vez de criar um novo Tribunal e multiplicar por dois o problema, é preciso reestruturar e aperfeiçoar o TCE, incorporando à sua rotina princípios moralizadores”, defende.

O pior é que o Rio já viu este filme, com outros atores. Por meio de decreto, o então governador Moreira Franco criou em outubro de 1990 sete novos cargos de conselheiros para o também recém-criado Conselho Estadual de Contas dos Municípios. O Conselho foi extinto oito meses após a sua instalação – com voto de vários deputados hoje favoráveis a ressuscitar órgão semelhante. Mesmo assim, as nomeações dos conselheiros que ficaram sem função não puderam ser invalidadas e são pagas até hoje: já custaram aos cofres públicos R$ 31 milhões.

Segundo a folha de pagamentos do TCE-RJ, esses ex-conselheiros aposentados ou seus pensionistas recebem anualmente R$ 1,7 milhão. Um filme de final infeliz – que não merece ser reprisado.

Esse post foi publicado de sábado, 27 de fevereiro de 2010 às 09:30, e pode ser acompanhado neste link.
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