Crítico contumaz da metodologia de escolha dos conselheiros do
Tribunal de Contas do Estado (TCE), o presidente da Federação Nacional
das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc)
e do Centro de Auditores Públicos Externos do TCE (Ceape), Amauri
Perusso, reclama da falta de autonomia dos controladores na análise das
contas de entes públicos, e diz que a interferência de interesses
políticos nas cortes de Contas é uma das responsáveis pela corrupção no
Brasil.
“Informações e provas dos relatórios (elaborados pelos
auditores) são completamente abstraídas para que o julgamento se dê de
acordo com a relação política entre o conselheiro e o gestor cujas
contas estão sendo avaliadas”, diz Perusso, que cobra alterações na
forma como são preenchidas as vagas dos tribunais, a fim de penalizar e
coibir desvios dos administradores públicos.
Nesta entrevista,
também fala sobre o projeto do TCE para aumentar multas a gestores
públicos que cometam irregularidades e faz duras críticas ao sistema de
cálculo das dívidas dos estados - defendendo um deságio desde 1998.
Porém, Perusso rejeita a Selic como novo indexador. “Qualquer cidadão
não faria uma compra numa loja em que o lojista dissesse que ele
estabeleceria os critérios de pagamento quando a dívida vencesse”,
justifica.
Jornal do Comércio - Por que há tanta corrupção no Brasil?
Amauri Perusso -
Diz-se que o Brasil é um país muito corrupto. Nós, da Fenastc
(Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas
do Brasil), entendemos que o Brasil é um país pouco auditado. Em
primeiro lugar, se fizermos um comparativo entre o número de auditores
que o Brasil tem, em relação a qualquer um dos países desenvolvidos,
veremos que temos, no mínimo, a necessidade de multiplicarmos por dez o
número de controladores.
JC - Isso resolveria?
Perusso - Não, esses auditores precisam ser qualificados, treinados, ganhar uma
certificação internacional de auditoria. Depois, necessitam de
autonomia para atuar em campo.
JC - Por quê?
Perusso - Temos tribunais de Contas onde, não só os conselheiros interferem,
como também quem está fazendo a auditoria são cargos comissionados
(CCs). Não são, sequer, auditores concursados. Há estados brasileiros
que têm auditores que vêm de empresas terceirizadas. Qual a autonomia
que esse funcionário tem para fazer um trabalho completo de auditoria?
Primeiro, ele tem uma má formação e teria muitas dificuldades para
desenvolver plenamente o seu trabalho. Segundo, ele não tem
independência para atuar lá. Temos de ter garantias de autonomia para
auditores públicos, e elas têm que estar expressas. Qual a garantia que
eu tenho de fazer a auditoria e de não ser perseguido porque eu anotei
achados de auditoria que comprometem o gestor, que é amigo do
conselheiro, que é amigo do ministro, do governador ou do presidente?
JC - Essas relações acontecem com frequência?
Perusso -
Acontecem permanentemente no Brasil. Acontecem porque nós temos um
modelo de escolha de conselheiros no qual as vagas, majoritariamente,
são preenchidas por pessoas do mundo político. No Tribunal de Contas da
União (TCU), quer a indicação seja do Senado, da Câmara ou da
presidência (da República), ela recai notadamente sob seus amigos, os
quais vão ao tribunal para defender os seus interesses. Nos estados, em
cada sete conselheiros, só dois advêm da área técnica - um vem do
Ministério Público (MP) de Contas e outro vem do corpo de carreira
técnica do tribunal. Dos outros cinco, quatro são escolhidos pelo
Parlamento e um pelo governador. Historicamente, tem se montado
verdadeiras bancadas de partidos dentro dos conselhos de Contas. Essas
escolhas comprometem enormemente a independência do trabalho de campo.
Na hora do julgamento, se desconstrói e se desatende os dados e
apontamentos existentes dentro dos relatórios. As informações e provas
dos relatórios são completamente abstraídas para que o julgamento se dê
de acordo com a relação política entre o conselheiro e o gestor cujas
contas estão sendo avaliadas. O povo brasileiro não sabe, mas existem
dez pareceres de contas de presidente da República emitidos pelo TCU que
sequer foram apreciados pelo Congresso.
JC - Como acabar com as indicações políticas?
Perusso - Quando a Constituição trata - no artigo 73 - sobre a escolha de
ministros e conselheiros, diz claramente que a escolha se dará entre
brasileiros, e dentre os brasileiros que tenham determinadas
características e requisitos que este cidadão deve ter. O Congresso e as
assembleias legislativas insistem em ler que se dará entre deputados,
ex-deputados ou amigos do governador e do presidente. Essa distorção,
primeiro, precisa ser rompida. Nós estamos sugerindo uma dinâmica que,
uma vez aberta a vaga de ministro ou conselheiro, publique-se um edital,
porque isso é cargo público, e qualquer cidadão que entender que tem as
qualidades essenciais possa se apresentar. E possa demonstrar, em
audiência pública de verdade, porque os parlamentos fazem audiências
laudatórias e não há nenhuma averiguação se ele tem efetivamente essas
qualidades. Portanto, ministros (do TCU) e conselheiros não estão sendo
submetidos ao critério de avaliação. A sociedade tem o direito de
disputar esse cargo, e o Parlamento tem a prerrogativa de, em plenário,
ouvidos os candidatos, fazer uma escolha dentre eles, e a sociedade vai
acompanhar, efetivamente, quem está sendo escolhido em detrimento de
outros.
JC - A forma como está sendo encaminhado hoje é ilegal?
Perusso - É completamente inconstitucional. Com exceção feita aos estados de
Santa Catarina, Paraná e Rio de Janeiro, que já abriram esse mecanismo
de edital e permitem que as pessoas participem. Em todos os outros
estados você só pode competir e concorrer à vaga de conselheiro se for
indicado por um partido político que tenha assento no Congresso ou
representação nas assembleias. Os partidos indicam os seus próprios
deputados. O cidadão não tem a menor possibilidade de participar desse
processo.
JC - A corrupção está ligada a essa falha?
Perusso -
A corrupção é um fenômeno que tem várias causas, mas duas são mais
expressivas. Uma é a ausência de punição. Neste momento, o Supremo
Tribunal Federal (STF) julga pela primeira vez atos de corrupção e
estabelece penas, mas o faz pela metade, porque não identifica quem
transferiu os recursos, e faz um julgamento adiando o outro que era
anterior. Esse mecanismo que ele está julgando hoje já vinha lá de trás,
desde o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), e atingia
fortemente Minas Gerais. Inclusive, o operador era o mesmo: Marcos
Valério era o operador do mensalão mineiro, e, depois, virou operador do
mensalão do PT. Um tribunal não pode fazer escolhas. Tem de fazer o
julgamento das situações envolvidas. Dentro do Congresso, hoje há 190
processos que tratam daqueles que têm foro privilegiado, e nenhum deles
vêm sendo julgado, e sistematicamente as matérias estão sendo
prescritas. É preciso mais efetividade para demonstrar que abandonamos a
ideia de impunidade. A impunidade é um mecanismo profundo que autoriza a
corrupção. O segundo item importante é que precisamos ter instrumentos
para combater a corrupção. Os países com menor índice de corrupção têm
grande número de auditores, que são controladores desta realidade e que
fazem auditoria concomitantemente.
JC - Como vê o projeto de lei do TCE que aumenta as multas para gestores públicos?
Perusso - A iniciativa do TCE gaúcho é importante. Contém três questões
centrais: o aumento do valor da multa (hoje em R$ 1,5 mil), instituindo a
possibilidade de que ela vá de R$ 3 mil a R$ 20 mil; a multa
proporcional ao dano causado ao erário - e este é o coração do projeto
-, do qual pouco ou nada se tem discutido; e a possibilidade de
distribuição da responsabilidade, ou atribuição da responsabilidade de
acordo com a participação de cada agente no episódio que está sendo
acompanhado. A distribuição de responsabilidade não tem conflito, é uma
antiga reivindicação dos prefeitos, e, quanto a isso, não há crítica dos
gestores. O simples aumento dos valores de multa representa muito
pouco, porque, em outros estados, temos a possibilidade de multas muito
mais elevadas, e, no entanto, isso não inibe a corrupção. Um dos
principais críticos ao projeto era o ex-prefeito de São Borja Mariovane
Weis (PDT), e ele estava fazendo um procedimento de privatização da água
do município, que representava R$ 807 milhões, segundo os valores
estabelecidos no edital. Haverá diferença substancial se a multa for de
R$ 150 mil, de R$ 3 mil ou de R$ 20 mil? Não. A questão principal é a
multa proporcional ao dano causado.
JC - Como vê a discussão sobre a dívida dos estados?
Perusso -
Estamos vivendo uma coisa curiosa. O Estado fez um acordo de
federalização da dívida, em 1998. A União está administrando essa
dívida. O Rio Grande do Sul pagou, em 2011, R$ 2,5 bilhões de juros e
atualização monetária - porque não foi pago nada do principal - e a
dívida permanece crescendo. Vem formando um resíduo que terá que ser
resgatado ao final do contrato de federalização. A União arrecadou dos
estados e municípios, em 2011, R$ 22,8 bilhões, a título de pagamento
dessa dívida. A União gastou R$ 87 milhões para fazer a administração
dessa dívida. Então ela vem fazendo um ganho financeiro absurdo sobre
estados e municípios. Em troca, ela oferece crédito. A Assembleia gaúcha
aprovou, neste ano, autorização para que o governo gaúcho tome
emprestados R$ 4,3 bilhões.
JC - Os estados cobram a mudança do indexador, e a União acena o uso da Selic...
Perusso -
A primeira pergunta que precisa ser feita é por que a União instituiu o
IGP-DI, quando você tem o IPCA, que, exatamente, mede a inflação? O
IGP-DI contempla variáveis que são de natureza muito mais financeira do
que uma medida de perda de compra do valor da moeda. A diferença entre
os dois foi marcante no período. Se aplicássemos o IPCA sobre a dívida
pública do Rio Grande do Sul, a diferença acumulada entre 1998 e 2011
seria de R$ 13 bilhões contra o Estado. Esta é a primeira questão. Tem
que refazer o contrato voltando a sua origem. Segundo, qual a lógica de a
União aplicar juros sobre os estados (de 6% ao ano, além do IGP-DI)? A
União fez um programa de política econômica, e as relações entre os
entes federativos não autorizam que um dos entes, por ter maior força,
se institua na condição de banqueiro. Não tem nenhum sentido você
instituir juros sobre essa dívida. Estamos dizendo que tem que
desconstituir isso, tem que retirar os juros desde o início.
JC - E a mundança para a taxa Selic?
Perusso -
Não me parece um bom negócio, porque a Selic permanecerá sendo
comandada pelo governo federal. O mais razoável é um contrato que refaça
os cálculos, estabeleça o fim da taxa de juros, estabeleça a taxa de
inflação do período como mecanismo de correção e devolva ao Estado tudo
aquilo que foi indevidamente apropriado, além de estabelecer o
equilíbrio econômico-financeiro. Ou seja, se houver alterações
substantivas que produzam eventuais prejuízos a qualquer uma das partes,
esse contrato precisa ser revisto. Em 1998, não foi instituída nenhuma
cláusula desse tipo. Isso é mais razoável que a Selic, ainda que no
momento ela esteja baixa.
JC - Não se corre o risco de trocar o indexador por outro que também é muito volátil?
Perusso - Certamente. A taxa Selic não é uma garantia para os estados. Eles não
participam da decisão. Qualquer cidadão não faria uma compra numa loja
em que o lojista dissesse que estabeleceria os critérios de pagamento
quando a dívida vencesse.
Perfil
Amauri Perusso tem 50 anos. Nasceu no município gaúcho de Erval Grande. Formou-se em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(Pucrs), onde também concluiu especialização em Direito Constitucional.
Desde 1992, é servidor concursado do Tribunal de Contas do Estado (TCE),
exercendo a função de auditor público externo. Integra a Federação
Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil
(Fenastc) e o Centro de Auditores Públicos Externos do TCE (Ceape).
Filiou-se ao antigo MDB quando tinha 16 anos e estudava na escola
agrícola, em Palmeira das Missões. Permaneceu no PMDB até 1996 e diz ter
se desfiliado da legenda porque “o partido perdeu a visão de papel
político nacional”. Chegou a receber convites para entrar em outras
siglas, mas preferiu “manter distância”, por não se identificar com
nenhuma. É pai de Diogo, de 8 anos, e Sofia, de 14 anos.
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