Quando retomar amanhã o julgamento do mensalão, o Supremo já não terá
a presidi-lo o juiz que foi o responsável direto pela sua realização.
Aposentado compulsoriamente aos 70 anos, Ayres Britto já deixou, porém,
suas marcas não só neste que foi certamente o mais complexo da história
recente do STF, mas também em outras decisões históricas como a
derrubada da Lei de Imprensa dos tempos da ditadura, que, na sua
opinião, foi, essa sim, a decisão mais importante da qual participou,
por ter permitido a plenitude da liberdade de imprensa no país,
inviabilizando qualquer tipo de censura.
“Quem quer que seja pode
dizer o que quer que seja. Responde pelos excessos que cometer, mas não
pode ser podado por antecipação.” Seu último ato como presidente do
Conselho Nacional de Justiça foi criar uma comissão para acompanhar
processos que tratam da liberdade de imprensa.
O Fórum Nacional do
Poder Judiciário e Liberdade fará uma estatística das decisões e
acompanhará acusações que tratem diretamente do tema. “As relações de
imprensa são da mais elevada estatura constitucional pelo seu umbilical
vínculo com a democracia”, justificou.
Pelo menos uma vez por ano,
a comissão fará um encontro nacional para discutir o tema. Para Ayres
Britto, “cortar esse cordão umbilical entre a democracia e a liberdade
de imprensa é matar as duas.”
Britto também se posicionou
favoravelmente ao aborto em casos de anencefalia e justificou seu voto
com rasgos de poesia, como faz sempre que cabível: “Dar à luz a vida é
dar vida e não dar a morte”.
Ficou famosa sua frase sobre o órgão
sexual no julgamento sobre união civil de homossexuais: “O órgão sexual é
um ‘plus’, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um
estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses”.
Na votação da
Ficha Limpa, Ayres Britto definiu que existem três valores consagrados: a
democracia, o meio ambiente equilibrado e a moralidade da vida pública.
“Valores que todo povo que se preze consagra na sua experiência
histórica.”
Defendeu a tese de que a Constituição mandou
considerar a vida pregressa do candidato, “que não pode estar imersa em
nebulosidade no plano ético”, pois a palavra “candidatura” vem de
“cândido”, “limpo”.
Para ele, a Ficha Limpa ambiciona implantar “uma qualidade de vida política e acabar com uma cultura perniciosa”.
Foi
também o relator do processo da demarcação da reserva Raposa Serra do
Sol, onde vivem 18 mil índios das etnias Macuxi, Wapichana, Patamona,
Ingaricó e Taurepang. Para ele, “ninguém conhece as entranhas do país,
as fronteiras do Brasil, melhor do que os índios. É preciso inculcar
neles aquilo para o que já têm predisposição, o sentimento de
brasilidade, tratá-los como brasileiros que são".
No processo do
mensalão, que ele viabilizou também pela mediação dos conflitos na
Corte, o Ayres Britto preocupou-se, em seus votos, em unir a parte
técnica com a defesa de valores democráticos: “Formação argentária,
pecuniária, de maioria, com base na propina, no suborno e na corrupção é
repudiada pela ordem jurídica brasileira”, disse ele sobre o mensalão.
Para
condenar por formação de quadrilha, ele baseou sua decisão no
convencimento de que a paz pública foi afetada e que é preciso condenar
os culpados para que a sociedade não perca a crença de que o Estado dará
a resposta adequada.
"A paz pública é essa sensação coletiva em
que o povo nutre a segurança em seu Estado. Dessa confiança coletiva no
controle estatal é que me parece vir a paz pública”.
Como
presidente do STF, Ayres Britto teve ocasião de explicitar com bastante
clareza o método que estava sendo utilizado durante o julgamento,
rebatendo as críticas sobre os critérios utilizados: “(…) Prova direta,
válida e obtida em juízo. Prova indireta ou indiciária ou
circunstancial, colhida em inquéritos policiais, parlamentares e em
processos administrativos abertos e concluídos em outros poderes
públicos, como Instituto Nacional de Criminalística e o Banco Central da
República”. (…) Provas circunstanciais indiretas, porém, conectadas com
as provas diretas”.
Se pegarmos seus votos no processo do
mensalão e compararmos com outros, de igual importância para a
consolidação da democracia, constataremos sempre a preocupação humanista
a embasá-los.
Para ler a coluna diretamente no Jornal O Globo Online
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