Não há como negar a existência de uma crise entre o Legislativo e o
Judiciário neste momento, e o pano de fundo é o julgamento do mensalão,
agora na sua fase decisiva. Há diferenças fundamentais, no entanto,
entre decisões tomadas nas últimas horas que geraram esse ambiente de
mal-estar institucional.
O equilíbrio entre os poderes da
República será quebrado caso o escandaloso projeto de emenda
constitucional aprovado pela CCJ da Câmara, dando ao Congresso a
possibilidade de rever decisões do Supremo e até mesmo submeter algumas
delas a plebiscito, prossiga até o final do processo legislativo. Uma
retaliação clara de um grupo petista à atuação do Supremo no julgamento
do mensalão.
Já a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes
sustando a tramitação do projeto de lei que cria obstáculos a novos
partidos segue rigorosamente a jurisprudência da Corte e representa a
defesa constitucional dos “princípios democráticos, do pluripartidarismo
e da liberdade de criação de legendas.” A base de toda discordância
está na não aceitação por parte de grupos políticos da predominância do
Supremo Tribunal Federal no que se refere à interpretação
constitucional.
É com o objetivo de ressaltar esse papel do
Supremo de dar a última palavra em termos de Constituição que o ministro
Gilmar Mendes lembra na liminar que, quando analisou a Ação Direta de
Inconstitucionalidade contra o PSD, que tinha o objetivo de impedir que
os parlamentares que foram para a nova legenda levassem consigo o tempo
de televisão e o dinheiro do Fundo Partidário, o Supremo decidiu
“assegurar aos partidos novos, criados após a realização das últimas
eleições gerais para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso
proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral
gratuita no rádio e na televisão, considerada a representação dos
deputados federais".
Diante desta decisão, que, lembra Gilmar
Mendes, foi acatada na última eleição municipal, o projeto de lei
“parece afrontar diretamente a interpretação constitucional veiculada
pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.430, Rel. Min. Dias
Toffoli, a qual resultou de gradual evolução da jurisprudência da
Corte, conforme demonstrado”.
O presidente do Senado, Renan
Calheiros, levou a questão para o plano emocional quando afirmou que “da
mesma forma que não interferimos no Judiciário, não aceitamos que o
Judiciário influa nas nossas decisões”. Na própria liminar o ministro
Gilmar Mendes já respondera a essa acusação reproduzindo um texto do
decano da Corte, o ministro Celso de Mello, que diz que o Supremo pode
interferir “sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites
delineados pela Constituição ou exerçam as suas atribuições
institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de
qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros do
Congresso Nacional”.
Para o ministro Gilmar Mendes, diante da
decisão anterior do STF, “a aprovação do projeto de lei em exame
significará, assim, o tratamento desigual de parlamentares e partidos
políticos em uma mesma legislatura. Essa interferência seria ofensiva à
lealdade da concorrência democrática, afigurando-se casuística e
direcionada a atores políticos específicos”.
O ministro Gilmar
Mendes trouxe ao debate mais uma vez, na sua liminar, a impossibilidade
de se alterar uma decisão do STF através de um projeto de lei, coisa que
o próprio Supremo já considerou inconstitucional. A esse respeito, há a
famosa discussão entre Rui Barbosa e Pinheiro Machado, que criticava
uma decisão do STF. O episódio foi lembrado por Celso de Mello durante o
julgamento do mensalão, dizendo que Rui definira “com precisão” o poder
da Suprema Corte em matéria constitucional:
“Em todas as
organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema
para errar em último lugar. O Supremo Tribunal Federal, não sendo
infalível, pode errar. Mas a alguém deve ficar o direito de errar por
último, a alguém deve ficar o direito de decidir por último, de dizer
alguma coisa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”
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