Mesmo que as reivindicações sejam várias e muitos cartazes exibam
anseios mal explicados ou utopias inalcançáveis, há um ponto comum
nessas manifestações dos últimos dias: a luta contra a corrupção. A
vontade de que o dinheiro público seja gasto com transparência e que as
prioridades dos governos sejam as questões que afetam o dia a dia do
cidadão comum, como a saúde, a educação, os transportes públicos, está
revelada em cada palavra de ordem, até mesmo nas que parecem nada ter a
ver com o fulcro das reivindicações, como no protesto contra a PEC 37.
Nele
está contido o receio da sociedade de que, com o Ministério Público
impedido de investigar, o combate à corrupção seja prejudicado. Todas as
questões giram em torno do dinheiro público gasto sem controle, como
nos estádios da Copa do Mundo, todos com acusações de superfaturamento. O
dinheiro que sobra para a construção de “elefantes-brancos” falta na
construção de hospitais ou de sistemas de transportes que realmente
facilitem a vida do cidadão.
O mundo político está de cabeça para
baixo tentando digerir as mensagens que chegam da voz rouca das ruas,
como dizia Ulysses Guimarães, que dizia também que “a única coisa que
mete medo em político é o povo na rua”. Ninguém entende, por exemplo,
por que houve esse verdadeiro estouro da boiada agora, e não há um mês
ou mesmo há um ao.
Eu tenho um palpite: assim como as
manifestações na Tunísia, as primeiras da Primavera Árabe, começaram com
o suicídio de Mohamed Bouazizi, de 26 anos, vendedor ambulante de
frutas e verduras, que ateou fogo ao corpo depois de ser proibido de
trabalhar nas ruas por não ter documentos nem dinheiro para pagar
propinas aos fiscais, as manifestações aqui foram grandemente
impulsionadas pela reação violenta da polícia em São Paulo na semana
passada.
O movimento contra o aumento das passagens de ônibus
poderia não ter a amplitude que ganhou se não houvesse uma reação nas
redes sociais à atitude da polícia, como se todos sentissem a opressão
do Estado na sua pele, e de repente liberassem os diversos pleitos que
estavam latentes na sociedade.
Creio que foi a partir do
entendimento de que uma reivindicação justa como a da redução das
tarifas de ônibus estava sendo tratada simplesmente como um pretexto
para arruaças e vandalismos que a sociedade passou a se mobilizar para
ampliar suas reivindicações.
Isto nada tem a ver com comparações
entre as mobilizações que ganham as principais cidades do país e a
Primavera Árabe, pois estamos em uma democracia e não se trata de
derrubar governos, mas de mudar a maneira de geri-los, política e
administrativamente. E também não é possível considerar que os abusos de
um dia impedem as polícias de reprimir a parte radicalizada das
manifestações, que vandaliza as cidades ou tenta invadir prédios
públicos ou as residências das autoridades.
Creio mesmo que no
Rio e em São Paulo as autoridades ficaram paralisadas diante da
violência de parte dos manifestantes e não agiram com o rigor devido
nessas ocasiões. O que demonstra falta de bom senso. Um detalhe que
define bem a divisão desses movimentos foi o grupo de jovens que foi ao
centro do Rio ontem tentar limpar e consertar em parte o que os vândalos
fizeram no dia anterior. E em São Paulo, em frente ao Palácio dos
Bandeirantes, enquanto um grupo tentava derrubar o portão de entrada,
outros o recolocavam no lugar.
O ambiente econômico também deve
ter contribuído para quebrar aquela falsa sensação de bem-estar. E é
impressionante que o imenso aparato de informações de que cada governo
dispõe, especialmente a presidência da República, e as pesquisas de
opinião não detectaram essa indignação que explodiu nas ruas.
O
dono de um desses institutos de opinião que vende seus serviços para o
PT e acrescenta a eles, como um bônus, comentários em revistas
chapas-brancas, chegou a ironizar as oposições e analistas que
criticavam o governo, afirmando que viviam em uma realidade paralela,
que nada tinha a ver com a vida do cidadão comum, que estava muito
satisfeito. Segundo ele, não havia sinal de mudança de ventos que suas
pesquisas pudessem captar.
Também o ministro Gilberto Carvalho,
da secretaria geral da Presidência, que anunciou que “o bicho vai
pegar”, parece estar atordoado com o bicho novo que está pegando sem que
ele, ou o PT, dominem a situação.
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