Década sim, década não, o Tesouro Nacional era chamado a socorrer
Estados e municípios atolados em dívidas. A Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), de maio de 2000, foi um avanço institucional importante e
pretendeu colocar um fim a esse ciclo danoso. O problema é que surgiu
uma ameaça no horizonte. O projeto de lei complementar que muda o
indexador da dívida renegociada dos governos subnacionais e os seguidos
afrouxamentos de seus limites para a contratação de operações de crédito
fragilizam a LRF e abrem flancos que podem levar o contribuinte a ter
que pagar, novamente, a conta dos excessos cometidos pelos governos
regionais.
Com a concordância do Executivo, a Comissão de Finanças e Tributação
da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei complementar número
238/2013, que muda o indexador da dívida de Estados e municípios
renegociada depois de 1997. No plenário, a proposta receberá uma emenda
substitutiva global que autoriza o recálculo das dívidas, com juros
menores, de forma retroativa à assinatura dos contratos.
A federalização dessas dívidas foi a forma encontrada para superar a
grave crise fiscal que afetava os entes subnacionais na década de 1990.
De forma geral, Estados e municípios estavam insolventes, resultado de
gastos fora de controle e emissão de dívidas acima da capacidade de
pagamento. Naquela época, permitia-se que os bancos públicos estaduais
financiassem os governos, operando, na prática, como verdadeiras
máquinas de imprimir dinheiro. Os desequilíbrios foram agravados pelas
altas taxas de juros vigentes nos anos seguintes ao lançamento do Plano
Real e foram expostos com o fim da hiperinflação.
O Tesouro tornou-se, então, credor de Estados e municípios, com
condições financeiras de pai para filho: juros equivalentes à inflação
medida pelo IGP-DI mais uma taxa de 6% a 9% ao ano, bem abaixo da taxa
Selic então vigente, que chegou a 45% ao ano. Para evitar a repetição
dos desequilíbrios, que no governo Sarney já havia ensejado outra
renegociação, o Tesouro exigiu que Estados e municípios se
comprometessem a realizar programas de ajuste fiscal. E, para suprimir o
"risco moral" que refinanciamentos dessa natureza criam, a Lei de
Responsabilidade Fiscal vedou, em seu artigo 35, novas repactuações.
Em entrevista na sexta-feira ao Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor,
o ministro da Fazenda, Guido Mantega, sustentou que a mudança do
indexador não fere a LRF. Segundo ele, os contratos já previam que, em
caso de atraso nos pagamentos, as parcelas fossem corrigidas pela taxa
Selic.
A despeito das negativas, o que o projeto 238 faz é repactuar a
dívida, corrigindo-a retroativamente pela Selic, em vez do reajuste pelo
IGP-DI, acrescido de juros entre 6% a 9% ao ano. O projeto determina
que, daqui em diante, a correção seja feita por IPCA mais 4% ao ano.
A mudança representa um alívio nas condições das dívidas não
previstas no contrato original. E dissemina suspeitas de casuísmo, pois
favorece sobretudo o município de São Paulo, governado pelo petista
Fernando Haddad, que verá a dívida encolher R$ 24 bilhões e terá mais
espaço para tomar novos empréstimos para bancar investimentos. Todo o
conjunto dos Estados, somado, terá alívio de U$ 1 bilhão.
As novas condições oferecidas a Haddad se juntam a um movimento de
alívio fiscal já posto em prática pelo governo federal. O Ministério da
Fazenda autorizou Estados e municípios a contratarem R$ 89 bilhões em
novas dívidas. O ministro Mantega disse ao Valor PRO que essas autorizações foram concedidas até o ano passado e que, neste
ano, nenhum novo pleito foi aceito. Embora seja reconfortante a
indicação de que a liberalidade na aplicação dos limites de
endividamento acabou, as autorizações feitas até agora têm uma dimensão
razoável. Seria menos preocupante se Estados e municípios estivessem
tomando empréstimos de agentes privados, ficando sujeitos, portanto, à
disciplina do mercado. Mas o crédito é concedido sobretudo por bancos
federais.
Hoje, Estados e municípios comprometem entre 11% e 13% de sua receita
corrente líquida com pagamentos da dívida refinanciada. Com os novos
compromissos assumidos, muitos dos quais com prazos de carência
generosos, não será surpresa se os prefeitos e governadores eleitos no
futuro baterem à porta do Tesouro para refinanciar, uma vez mais,
dívidas impagáveis.
Fonte: Jornal Valor Econômico