Desconto retroativo de débitos de estados e " municípios pode piorar nota de crédito do país
A Câmara dos Deputados aprovou ontem, por 334 votos a favor e nove
contra, projeto de lei complementar que altera o indexador utilizado na
correção das dívidas de estados e municípios com a União, a partir de
janeiro de 2013, e ainda permite um desconto no estoque acumulado até o
final do ano passado. As mudanças, que ainda precisam passar pelo
Senado, acenderam o sinal amarelo no mercado, que vê nelas mais um risco
ao equilíbrio das contas públicas e mais um elemento de perda de
credibilidade junto às agências de classificação de risco. A
deterioração fiscal, com a chamada contabilidade criativa, foi um dos
prin-; cipais fatores que levaram a Standard & Poor ameaçar rebaixar
o rating do Brasil, colocando o país sob perspectiva negativa em junho.
Além disso, segundo especialistas, ao alterar o estoque da dívida, as alterações ferem a Lei de ; Responsabilidade Fiscal (LRF).
Na
prática, a União dará a estados e municípios mais margem para gastar,
reduzindo ainda mais sua contribuição para o superávit fiscal primário
(economia realizada para o pagamento de juros da dívida pública). Essa
contribuição hoje já é pequena. O superávit primário do setor público
acumulado em 12 meses fechados em agosto está em R$ 84,7 bilhões, ou
1,82% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços
produzidos no país), sendo que a meta oficial é de R$ 155,9 bilhões, ou
3,1% do PIB. Deste total, R$ 47,8 bilhões (0,95% do PIB) cabem a estados
e municípios. No entanto, até agosto, o montante economizado por esses
entes era apenas de R$ 18,9 bilhões, ou 0,41% do PIB.
Embora
concordem que a troca do índice de correção das dívidas de estados e
municípios seja apropriada, já que a economia brasileira mudou e hoje
tem juro real na casa de 3%, muitos especialistas criticam a revisão dos
débitos de forma retroativa. A professora do Instituto de Economia da
UFRJ Margarida Gutierrez vê um risco para a avaliação de crédito do
país.
—
(A medida) pode respingar sim. Todos já estão dizendo que ano que vem o
rating do Brasil vai ser diminuído. É o descumprimento de uma lei que
inaugurou um divisor de águas, que foi a LRF — afirma, lembrando que
outra conseqüência da : aprovação do texto é a diminuição da
contribuição ! de estados e municípios para* o superávit fiscal.
ABATIMENTO RETROATIVO A ATÉ 1997
Pela
proposta, as dívidas serão corrigidas pela taxa básica de juros Selic
ou pelo IPCA mais 4% ao ano, o que for menor. Hoje, o indexador é o
IGP-DI mais 6% a 9% ano. Já a revisão dos estoques, que não era parte do
projeto original, foi incluída no texto com apoio do governo para
beneficiar principalmente o município de São Paulo, comandado por
Fernando Haddad (PT). A cidade poderá abater de seu estoque cerca de R$
24 bilhões, reduzindo seu estoque de R$ 54 bilhões para R$ 30 bilhões,
segundo informações da própria prefeitura.
Hoje,
as dívidas dos estados renegociadas com a União somam R$ 400,4 bilhões,
enquanto as de municípios são de R$ 68 bilhões, sendo a maior parte de
São Paulo. Dessa forma, o governo atendeu à demanda de governadores e
prefeitos e permitiu que o estoque da dívida anterior a 2013 seja
revisto. O Tesouro vai fazer uma simulação e, se a Selic do período
tiver sido mais vantajosa para a correção da dívida, ela vai substituir o
indexador até então em vigor de forma retroativa desde a assinatura do
contrato. Caso contrário, o contrato fica como está. No caso dos
estados, as dívidas foram renegociadas com a União em 1997. As
prefeituras fizeram acordos a partir de 2000.
Os
técnicos da equipe econômica afirmam que a mudança do indexador não
afeta a LRF, pois ele não está explicitado na lei. Mas admitem que há
controvérsias em relação à revisão do estoque. Esse ponto poderia ser
visto como uma alteração numa regra sagrada, que exige compromisso com o
equilíbrio fiscal. Mesmo assim, eles preferem adotar um discurso vago
ao comentar o assunto.
— Essa mudança não mexe nos princípios da LRF — disse um técnico.
TAXA DE JUROS ERA ABSURDA, DIZ LÍDER DO PSDB
Os
deputados, a contragosto do governo, ampliaram os efeitos da proposta,
prevendo renegociação também de contratos firmados com base na Lei
8.727/93, cujas dívidas tinham como origem basicamente débitos junto ao
Banco do : Brasil e Caixa Econômica Federal Neste caso, a Selic foi
adotada como limite nos contratos. Os aliados avisaram ao Palácio do
Planalto que se tratava de uma "emenda indigesta" incluída na proposta
para beneficiar principalmente Goiás.
O
texto principal foi aprovado no início da tarde na Câmara por ampla
maioria: 334 votos a favor e apenas nove contra. A proposta recebeu
sinal verde do Ministério da Fazenda, depois de várias negociações com o
relator, o líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
—
A União adota como teto a Selic nos contratos. Até agora, os estados e
municípios estavam sendo submetidos a uma taxa de juros absurda — disse
Cunha.
O
projeto permite ainda que capitais firmem com a União Programas de
Acompanhamento Fiscal (PAF) como já existe hoje para estados, o que
garantirá mais tranqüilidade financeira aos grandes municípios. Segundo
técnicos da área econômica, o objetivo do programa é auxiliar na
construção do superávit primário.
—
O maior problema é ser retroativo, porque acaba sendo uma válvula de
escape para que estados e municípios se endividem mais e gastem mais. É
preciso saber se esse dinheiro vai ser direcionado para investimento ou
para gasto com pessoal — pondera a economista Margarida Gutierrez.
O
economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, vê prejuízo
para a credibilidade fiscal do governo. Tanto ele quanto Margarida
afirmam que a aprovação da lei pode contribuir para o mau humor de
agências de rating em relação ao país.
—
Imagino que os R$ 15 bilhões de Libra (do bônus de assinatura do
primeiro leilão do pré-sal) vão tapar muito buraco, mas haja Libra para
cuidar de toda essa situação — ironiza. — No momento em que o governo
perdeu sua credibilidade fiscal e o superávit diminuiu, a pergunta é:
será que ele vai pagar ou refinanciar a dívida dos estados e municípios?
Se decidir pagar, a dívida (federal) aumenta.
O economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP, discorda que a lei tenha um efeito nocivo sobre as contas públicas.
Antes,
mesmo que estados e municípios conseguissem pagai; limitava-se a
capacidade de investimentos, e um dos desafios do Brasil é elevar esse
investimento — afirma.
Fonte: Jornal O Globo
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